quarta-feira, 28 de abril de 2010

Uma questão de harmonia

Houve tempo — sim, houve —em que me fiz duro e ameacei que não voltaria mais. Voltei. Fui o primeiro a chegar, mas não para ficar. Estava decidido ir-me embora. Não trouxe nada comigo, exceto a rede com que pesquei durante os últimos trinta anos que vivi beira mar. Pela janela do trem ainda avistei os companheiros, o barco e as redes sendo atiradas ao mar. Uma tristeza invadiu meu coração, apertei os lábios firmemente, uma lágrima rolou, mas eu era um homem, e, meu pai dizia que homens não choram. Como ele pôde ter se enganado tanto.

Estendi as mãos, e aceitei tranqüilamente o lenço que as mãos enrugadas de seu Orestes me ofereciam. Era o pescador mais velho da vila. Não ia mais para o mar. Silencioso, falava pouquíssimo e passava horas todos os dias na venda do Amauri olhando para a brisa sua velha conhecida. Sem dizer palavra desceu do trem e se foi. Segui meu caminho com a idéia clara de que adaptar-se a essa nova vida não seria fácil. Escolhi não pensar. Pernas no mundo, olhos no vazio.

O balançar dos trilhos me acalentou com um ritmo macio e suave, que sem perceber fechei os olhos, e infinitas imagens desfocadas das lembranças de felicidade da vida que vivi surgiram. Por fim, perdendo o controle de minha consciência, dobrei-me sobre o resplandecente mundo dos sonhos. Lá estava eu, jovem novamente. Os cabelos ao vento, a pele queimada de sol e a esperança de uma pesca farta em mais um dia que se iniciava. A lua ainda nos observava, e as estrelas brilhavam em um azul que devagar ia se desbotando em cor de neblina, manhã e maresia.

Fumo Ruim, como sempre distraído desembaraçando as linhas enroscadas na caixa de reparos. Trocávamos poucas palavras. No mais dizer era um óia o pulo deste baita à sua frente, ou a última moqueca que Joana de Altério havia preparado na festa de São Sebastião. A felicidade dava gozo ao meu coração. Falar pra que? Nem carecia. Queria chegar em casa com fartura de peixes e beijos. Afagar mansamente a barriga prenha de Helga, minha gringa, amor.

Despertei derrepente num vagão já vazio parado na estação. Desci e me deparei com o espectro da metrópole e suas montanhas de prédios apinhados de gente, suas avenidas como dragões infinitos, e me dei conta que nem Helga, nem filho, e nem nada. Em fuga do que não aconteceu. Como eu era feliz em esperança. Meu Deus!Se não apressar o passo não alcanço o ritmo desta gente. Cato as traias o papel com endereço, um nome para me levar adiante. Estava numa fria. Nunca pensei que isso fosse aquilo. Aquilo que por um momento achei que era bem melhor pra mim. Que baita choque! Senti-me até tonto naquele formigueiro. Ter de começar uma nova vida a partir do zero me afligia um pouco. Dentro, uma intuição me guiava. No fundo sabia haver algo reservado para mim. Eis me aqui, pensei olhando o papel e o número de uma casa grande e amarela. Vamos lá! Aceitar tranquilamente o que estiver reservado pra mim.

Pressionei o botão da campainha e nada aconteceu. Com o coração apertado, as mãos geladas e uma leve sensação de abandono, me preparava pra ir embora. Quando derrepente a porta se abriu, e um senhor de cabelos longos e passos lentos surgiu. Abriu um largo sorriso e me disse: ─ Adamastor! Mas que surpresa! Ora veja só, você, aqui! Você chegou agora? Venha, venha, vamos entrando, a casa é sua! A viagem foi boa? Olhei-o profundamente, e ainda que envolvido por aquele doce sorriso, disse: ─ Olha, meu caro, não gosto de ser um estraga-prazeres, por outro lado, sou um sujeito muito direto: Adamastor e eu somos gêmeos. Não sabia de minha existência? Essa minha pergunta, feita assim à queima roupa, não impediu que ele continuasse a sorrir, e mesmo com um ar surpreso disse:
─Um bom momento para nos conhecermos. Foi então que a oportunidade surgiu. Senti que poderia contar sem constrangimento minha história para aquele sujeito cheio de sorrisos. Eu sou o Otavio, disse estendendo-lhe a mão lentamente por cima do pequeno portão que nos separava. Adamastor soube que estou em situação bem difícil e me mandou procurá-lo. Na verdade perdi tudo que tinha de valor: minha mulher e meu barco. O barco afundou e eu não consegui salvá-la.

O sorriso desapareceu do rosto do homem. Abriu-me o portão olhando para o chão e disse:
─ Então vamos entrar. Lá dentro você me conta tudo tomando uma boa xícara de café. A propósito, meu nome é: ─ Lucas disse eu intenrrompendo-o. Ele sorriu novamente e disse, não não não, meu nome é Julio, Lucas é meu irmão gêmeo. Fiquei sem saber se aquilo era gozação, mas ele continuou:
─ Como vê, meu jovem, temos mais em comum do que você imagina. Também perdi a mulher que amava, mas isso já faz muito tempo, hoje guardo-a aqui, e pos a mão sobre o coração.

O velhinho me pareceu simpático embora mal o conhecesse. Adentramos sua casa avarandada onde se viam samambaias e rododendros de um vermelho impressionante. Passamos pelo saguão colonial e fomos para um jardim onde havia um banco sob uma frondosa primavera branca. Sentamo-nos e ele me ofereceu um mate delicioso. Então ele me olhou nos olhos e disse:─Sabe Otávio, percebi que gostou das minhas plantas, sinto que temos muita coisa incomum mesmo. É raro vir gente na minha casa sou um gostador de silêncio dizia meu pai. E ele estava certo, à tardinha gosto de sentar aqui olhar cada plantinha, as folhas das árvores com suas tonalidades diferentes, sentir o cheiro da terra molhada e, às vezes, quebrar o silêncio tocando minha gaita. Dei um pulo do banco, para surpresa dele que assustado arregalou os olhos, e por pouco não derrubo a xícara com o mate. Todo o meu gostar poderia se resumir em: pescar e tocar gaita.
Ainda perplexo com tamanha coincidência, não pensei duas vezes, tirei do casaco minha gaita, e naquela tarde como em nenhuma outra o som foi infinitamente reconfortante, e naqueles momentos de música, eu e Júlio nada falamos, porque o som nos unia e nos fazia conhecer cada detalhe de nossas histórias trágicas, como uma ópera. Continuei tocando minha gaita, e talvez por estar envolvido demais, não percebi a aproximação de um alguém, que me interrompeu me tirando do devaneio com um leve raspar de garganta:
─ Então, até que enfim você chegou Otávio! Vejo que já conheceu meu irmão Júlio, e não, não se preocupe com maiores explicações, a carta de Adamastor explicando sua situação chegou há dois dias atrás!

Constrangido, mas tranqüilo percebi que estava entre amigos. E certamente, como pressenti desde o princípio, havia algo ali reservado para mim. Lucas se aproximou lentamente fitando-me nos olhos com uma agradável tranqüilidade no rosto. Apertou minha mão em silêncio. Sacou do cachimbo no bolso do paletó, acendeu-o ainda em silêncio, mas com a atitude de quem ia dizer algo importante. Tirou uma primeira baforada, limpou a garganta e começou sua fala:
─ É, no mínimo, espantosa a semelhança de nossas histórias. Nós três carregamos na alma a dor de perdas insuportáveis. Cada um com sua circunstância, mas os três com o seu coração irremediavelmente ferido pela morte de alguém muito, muito querido. Digo irremediavelmente porque embora tenhamos encontrado algum motivo para continuar neste mundo, sempre teremos esta ferida a nos doer de quando em quando. No meu caso, já faz tanto tempo, que creio ter me viciado nesta dor que a ausência de Lucia me traz. Acho que não conseguiria mais ficar sem ela. Faz parte de minha existência.
Em você é uma dor recente. Uma ferida aberta. Mas você me parece capaz de conviver com ela. Assim como Julio e eu o fazemos.

Num rompante de confiança disse: ─ Saí com Helga ainda de madrugada, interrompi Lucas. Na noite anterior não ouvimos rádio nem vimos televisão, nada! Dormimos cedo e bem juntos como sempre. Na madrugada acordamos e saímos ainda escuro. Não sabíamos que teve tornado no mar alto. Ao sairmos com o barco percebi o mar agitado, mas mesmo assim não pensei em possibilidade de desgraça. Quando a primeira grande onda nos atingiu o barco mudou de direção e a segunda grande onda nos pegou de lado e nos emborcou. Foi tudo em questão de poucos segundos. Caí naquela escuridão sem ter nenhuma idéia de onde Helga teria caído. A minha direita, a minha esquerda, na frente, atrás? A consciência da tragédia chegou tão rápida quanto o barco virou. Sabia que era o fim para ela. Desde que perdera nosso bebê, naquele maldito aborto ela nunca mais foi a mesma. Acho que quando caiu, entregou-se aquela morte. Eu mergulhei inúmeras vezes tentando encontra-la, mas nada. Flutuei por horas a fio nas águas daquela baía. Meus cabelos dançavam líquidos e se embaraçavam com os dela, sem vida no fundo daquele mar profundo e azul. E seu corpo descia lentamente para um infinito de onde jamais retornaria, de minhas lágrimas fazia parte todo o oceano.

Mas estava ficando tarde e percebi que estava ainda ali olhando aqueles dois velhinhos me olharem com condescendência. Lucas pos a mão em meu ombro e disse: ─ Está com muita raiva de Deus? Desconcertei-me. Ele adivinhou meu pensamento. Sim-sim! Você adivinhou! Só não sabe o quanto o odeio! Respondi com voz meio rouca, meio fraca, estrangulada pelo quase choro que me veio. Engoli em seco o amargor da boca e pisquei seguidamente os olhos afastando o ardor das lágrimas que abortei.

─ Isto também vai passar me disse. Sem que você perceba, vai perdoá-Lo. Vai perceber que grande parte da humanidade sofre a perda de entes muito queridos. Você não é o único. A morte é necessária de alguma maneira que nós ainda não compreendemos, ou nos recusamos a compreender. Deus não mata. Acho que nos muda de lugar ou de forma, não sei bem. ─ Você vai acabar perdoando a Deus. Eu, um dia, aceitei tranquilamente o que ele me reservou.

Júlio, até então quieto, rompeu seu silêncio para completar tão bela fala. Acredito que perceberá ainda mais: ─ o que ele reservou é sempre o melhor, nós é que não enxergamos. E, naquela tarde ao som da gaita embriagados pela palavra divina, a idéia surgiu assim misteriosamente, feito um pássaro com seu belo canto. Descobrimos-nos músicos, era só uma questão de harmonia.

E Júlio ainda com um sorriso tranqüilo e sereno cantou ─ “Como pode um peixe vivo viver fora... Como poderei viver?” E animado bateu palmas que ecoaram como um brinde a vida.

Renato Ferreira, Youkai, Ermitão, Cristinasiqueira, Cajadomatic, Josy, Emilia, sueliaduan.

6 comentários:

  1. Parabéns a todos, uma frase de Vinicius de Moraes explica melhor - "A vida é a arte dos encontros, embora haja tantos desencontros pela vida". Isso !

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  2. Ficou lindo! Estou adorando isso de escrever com vocês! Bju!

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  3. UM Brinde a vida! às pessoas e aos encontros!

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  4. valeu tchurma, tapinha coletivo nas costas de todos nós. Suely, super editora!

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  5. Gostei muito tb pessoal!
    Obrigada,Cajadomatic valeu :o)

    vamuqvamu

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  6. Trilha sonora sugerida... XD
    http://www.youtube.com/watch?v=UvFxG3rZQ2E&feature=related

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