quinta-feira, 25 de março de 2010

Nosso hóspede


Era um sujeito de poucas palavras, desses que vez ou outra aparecem por aqui e só nos cabe o silêncio e um impecável atendimento. Não posso dizer que não ficava intrigada toda vez que o via descendo as escadas. Arrastava um pouco a perna o que aumentava a áurea de mistério que envolvia sua vida, além da minha própria desconfiança. E, a bem da verdade, a desconfiança não era só minha, não. De hábitos estranhos saía de manhãzinha levando uma pequena maleta preta e só retornava a noite. Exatamente no momento em que nosso hóspede chegava eu sempre me encontrava sozinha na portaria.
Foi quando numa dessas noites e com um céu estranhamente estrelado, a lua indo alto, que percebi: — não voltou com a maleta, mas ele também percebeu o meu espanto.

17 comentários:

  1. disse num só fôlego:
    - Bondosa senhora, perdoe minha entrada assim sem o apresentar-se natural de pessoas que hão de se conhecer mas não o fazem por timidez ou falta de tempo. Noto seu espanto ao ver-me chegar sem minha maleta que parece ser parte de minha identidade. Desta maneira gostaria de aproveitar a ocasião e me apresentar, Jaime Cordoba a seu inteiro dispor.

    Baqueada pelo inesperado colôquio balbuciei meu nome meio sem entender.
    - Ola, sou a Sueli...
    - Dona Sueli, desculpe o mal jeito, essa abrupta introdução de minha pessoa nos reconditos de seus pensamentos, é um prazer conhece-la. Gostaria que pudesse lhe confessar que ha muito havia notado sua presença indagativa que imagino ter a ver com minha maleta, um tanto surrada, mas de inestimavel utilidade para minha profissão mas o fato é que perdi a tal maleta e gostaria de saber se a senhora não a teria visto.

    Diante tanta polidez reconheci meu falso julgamento a respeito do pobre homem que me parecia correto e honesto apesar de coxo e soturno.

    - Não vi, disse eu, talvez o senhor tenha deixado em seu trabalho, seria possivel?

    - Não não seria, disse ele, meu trabalho não permite que tnha um lugar fixo.

    Ja me mordendo de curiosidade, quase pergunto que trabalho era esse mas ele se adiantou.

    - Sabe, sou tecnico de som, e trabalho para uma companhia de cinema. Busco sons para posterior sonoplastia e dentro da maleta está uma Nagra de 40.000 dolares que uso para coletar sons deste mundo.

    - Entendo sua preocupação, disse eu, especialmente hoje numa noite em que as estrelas estão tão lindas que parecem sussurrar uma canção.

    Ele deu um passo para tras e disse:

    ResponderExcluir
  2. Em noites assim, por incrível que pareça, paira um imenso silêncio, nas ruas, nas cidades, no mundo. Como se as estrelas cantassem uma bela canção aos nossos ouvidos insensíveis. Mas como apurar os ouvidos e observar é característica de meu trabalho, aprendi que há sempre som dentro do silêncio, e, é uma pena mesmo a maleta ter desaparecido. Poderíamos caminhar por estas alamedas desertas, e quem sabe, a senhora ficasse perplexa com ...

    ResponderExcluir
  3. os sons que vem da noite, da lua e das estrelas.

    - conheço o sons das estrelas, elas sempre cantam sua canção para mim

    - Tens admiravel bom senso minha senhora, quisera ter uma audição assim tão perceptiva.

    - Mas não é facil meu senhor, isso exige...

    ResponderExcluir
  4. de nós um tempo do ouvir.Imagino, por conta do seu próprio trabalho, que sabe o quanto valorizamos a imagem. E,assim nem nos damos conta da necessidade do silêncio para poder ouvir. Ouvir tanto a si quanto...

    ResponderExcluir
  5. os sussuros dos ventos onde caminham as vozes das pessoas queridas a alegrar o espaço amplo de nossos coraçoes.
    -minha senhora, que senso tens para o som, até mesmo o emitido pelo corpo em movimento de vida das pessoas ao seu redor! qual sua profissao? tem certeza que nao esta na area errada, poderia de ser melhor do que a mim em minha empreitada pelos ecos...

    ResponderExcluir
  6. Desculpe-me, senhor, estava tão concentrada na procura de um objeto valiosíssimo de um outro hóspede, que nem escutei o seu nome. Com vê, meus ouvidos não são tão apurados assim, ou melhor, são, mas não para todas as coisas. E até hoje não compreendi muito bem isso, penso que é coisa de família. Meu avô tinha um excelente ouvido para a música. Era marceneiro de mão cheia, aliás, dizia que o serrote na madeira emitia verdadeiros acordes. Com ele aprendi que, às vezes, uma coisa não tem nada a ver com a outra, que nem sempre a imagem diz o que lemos, e essas coisinhas que...

    ResponderExcluir
  7. aparentemente banais mas que carregam significado.
    Mas agora era Jaime quem mais não ouvia. Não lhe fora fácil se apresentar, dizer seu nome...
    Dizer seu nome a quem ? Ao vento ?
    Sueli estava perdida nos seus pensamentos, na procura dos seus objetos preciosos que sequer ouvira dizer o nome.
    Então, começou a se desvanecer nele a possibilidade de um encontro diferente.
    As estrelas ainda brilhavam num céu estranho, a lua ainda mais no alto, mas dentro dele...

    ResponderExcluir
  8. ainda havia uma preocupação maior que não permitia que se entregasse a essa nova pessoa, tão exótica quanto ele.
    Jaime não conseguia esconder a aflição de ter perdido seu instrumento de trabalho e suas mãos mostravam, pelo tremor insistente, seu nervosismo; o que fez com que Sueli se desligasse por um momento dos seus afazeres e, lendo a face do hóspede, perguntou:

    -O que é mesmo que disse levar na maleta?
    -Um Nagra, é um gravador poderosíssimo que capta com qualidade sons quase imperceptíveis ao ouvido humano.
    -Puxa, que interessante, e você nunca pensou em usá-lo para fazer escutas, de conversas alheias e que poderiam ser interessantes de se ouvir em certos momentos de solidão?
    -Na verdade, já fiz isso uma vez...

    ResponderExcluir
  9. mas não tenho esse costume, só uso com pessoas que me despertam o interesse. Uma vez, por descuido, acabei gravando uma conversa sua e, por acaso, ouvi que comentava sobre mim. Que eu era reservado, calado e, se não me falha a memória, intimidador. Gostaria de desfazer essa impressão. A gente poderia um dia desses tomar alguma coisa.
    -Estou muito ocupada, além disso sou casada e tenho uma criança.
    -Não! Tem certeza disso? Estou quase certo de que ouvi o contrário.

    ResponderExcluir
  10. - Talvez seu Nagra tenha ficado com defeito....
    - Pouco provavel. Mas eu estava pensando num sorvete. A senhora não gosta de sorvetes?

    ResponderExcluir
  11. Adoro,Sr.Jaime,ótima idéia. E quem sabe, ao sabor de um delicioso sorvete, eu possa desfazer esse equívoco, já que a probabilidade de seu Nagra ter dado defeito é inexistente.

    -Vai rir muito com...

    ResponderExcluir
  12. O que vou revelar. Não se espante não, não chega a ser demência. Mas é muito bom vê-lo sorrir. A verdade, é que tenho uma imensa paixão por livros. E leio alguns trechos em voz alta. O que gravou foi uma desses maravilhosos momentos. Talvez insanos. É uma maneira que encontrei de pertencimento à obra. No silêncio do meu quarto, ouvindo minha própria voz é como se a dor, a alegria, a descoberta dos personagens fossem meus. Outras vezes, fico em silêncio tentando enxergar o personagem: — seu rosto, seus olhos, sua boca. Aprendi com meu avô a importância de ouvir o silêncio para se criar a imagem perfeita.
    Mas eu fico aqui, falando quando deveria estar ouvindo. Penso que tem muito a ensinar Sr.Jaime Cor... Desculpe-me não quero ser indelicada, mas tive uma leve sensação de que quando se apresentou disse mais um outro nome. Cajado seria ou me enganei...?

    ResponderExcluir
  13. - Cordoba minha cara, a seu dispor. Curioso, conheci um Cajado ha algum tempo, era um sujeito taciturno, meio coxo, dava a impressão de estar sempre tentando entender coisas que não lhe eram permitidas entender, não sei que lhe sucedeu, gostava dele, era uma dessas pessoas que a gente nunca esquece mas que parece esquecer da gente.
    - Tem muita gente assim senhor Cordoba...
    - Jaime
    -Sim, Jaime, por favor não me chame de senhora, parece que esta falando com minha avó
    - Com prazer Sueli, veja, somos seis bilhões de habitantes no planeta agora, muitas pessoas desaparecem neste turbilhão de gente
    - Entendo, tambem conheci um Cajado, não sei se era coxo, mas era um bom pen pal, um amigo de internet que afinava bem com minhas idéias. Ainda somos amigos, vou perguntar a ele se ha algum coxo em sua familia.
    - Então...

    ResponderExcluir
  14. com tantas pessoas nesse mundo será possível que conhecemos o mesmo Cajado, Jaime? Estou tentada a crer que sim. Muita coincidência, pois esse meu amigo também tem essa característica, tão rara nos dias de hoje: — o de espantar-se com as coisas, de querer entendê-las. E apesar de conhecê-lo muito pouco, o fato de nossas idéias se afinarem, me dá essa tranqüilidade em falar dele a você. Seria ótimo não,se fosse o mesmo e ,ainda, de quebra gostasse de sorvete. Sairíamos os três pelas alamedas, em busca de sorveterias. Falaríamos da vida, do acaso, do som ,do silêncio, da imagem, da amizade, do querer, e em ser quem se é. E pode ser que...

    ResponderExcluir
  15. vc ache o seu Nagra! Aí tudo passaria a não ser coincidencia.
    - Sim, vamos torcer que isso aconteça. Mas deixa esses Cajado pra la. Vamos tomar nosso sorvete.
    - Claro! Vamos lá.

    E assim fomos pela alameda sob a luz das estrelas rumo ao sorvete de flocos.

    ResponderExcluir