terça-feira, 30 de março de 2010

Jaime Córdoba: " Em busca do som e do silêncio”



“Isolados experimentalmente de todo ruído externo,
escutamos no mínimo o som grave da nossa pulsação
sanguínea e o agudo do nosso sistema nervoso”.
John Cage

Era um sujeito de poucas palavras, desses que vez ou outra aparecem por aqui e só nos cabe o silêncio um impecável atendimento. Não posso dizer que não ficava intrigada toda vez que o via descendo as Era um sujeito de poucas palavras, desses que vez ou outra aparecem por aqui e só nos cabe escadas. Arrastava um pouco a perna o que aumentava a áurea de mistério que envolvia sua vida, além da minha própria desconfiança. E, a bem da verdade, a desconfiança não era só minha, não. De hábitos estranhos saía de manhãzinha levando uma pequena maleta preta e só retornava a noite. Exatamente no momento em que nosso hóspede chegava eu sempre me encontrava sozinha na portaria.
Foi quando numa dessas noites e com um céu estranhamente estrelado, a lua indo alto, que percebi: — não voltou com a maleta, mas ele também percebeu o meu espanto.

Veio em minha direção e disse num só fôlego:
- Bondosa senhora, perdoe minha entrada assim sem o apresentar-se natural de pessoas que hão de se conhecer, mas não o fazem por timidez ou falta de tempo. Noto seu espanto ao ver-me chegar sem minha maleta que parece ser parte de minha identidade. Desta maneira gostaria de aproveitar a ocasião e me apresentar, Jaime Córdoba a seu inteiro dispor.
Baqueada pelo inesperado colóquio balbuciei meu nome meio sem entender.
- Ola, sou a Sueli.
- Dona Sueli, desculpe o mau jeito, essa abrupta introdução de minha pessoa nos recônditos de seus pensamentos, é um prazer conhece-la. Gostaria que pudesse lhe confessar que há muito havia notado sua presença indagativa que imagino ter a ver com minha maleta, um tanto surrada, mas de inestimável utilidade para minha profissão, mas o fato é que perdi a tal maleta e gostaria de saber se a senhora não a teria visto.

Diante tanta polidez reconheci meu falso julgamento a respeito do pobre homem que me parecia correto e honesto apesar de coxo e soturno.
- Não vi, disse eu, talvez o senhor tenha deixado em seu trabalho, seria possível?
- Não, não seria, disse ele, meu trabalho não permite que tenha um lugar fixo.

Já me mordendo de curiosidade, quase pergunto que trabalho era esse, mas ele se adiantou.
- Sabe, sou técnico de som, e trabalho para uma companhia de cinema. Busco sons para posterior sonoplastia e dentro da maleta está uma Nagra de 40.000 dólares que uso para coletar sons deste mundo.
- Entendo sua preocupação, disse eu, especialmente hoje numa noite em que as estrelas estão tão lindas que parecem sussurrar uma canção.

Ele deu um passo para trás e disse:
- Em noites assim, por incrível que pareça, paira um imenso silêncio, nas ruas, nas cidades, no mundo. Como se as estrelas cantassem uma bela canção aos nossos ouvidos insensíveis. Mas como apurar os ouvidos e observar é característica de meu trabalho, aprendi que há sempre som dentro do silêncio, e, é uma pena mesmo a maleta ter desaparecido. Poderíamos caminhar por estas alamedas desertas, e quem sabe, a senhora ficasse perplexa com os sons que vem da noite, da lua e das estrelas.
- Conheço os sons das estrelas, elas sempre cantam sua canção para mim, Sr.Jaime
- Tens admirável bom senso minha senhora, quisera ter uma audição assim tão perceptiva.
- Mas não é fácil meu senhor, isso exige de nós um tempo do ouvir. Imagino, por conta do seu próprio trabalho, que sabe o quanto valorizamos a imagem. E, assim nem nos damos conta da necessidade do silêncio para poder ouvir. Ouvir tanto a si quanto os sussurros dos ventos, onde caminham as vozes das pessoas queridas, a alegrar o espaço amplo de nossos corações.

-Minha senhora, que senso tem para o som até mesmo o emitido pelo corpo em movimento de vida das pessoas ao seu redor! Qual sua profissão? Tem certeza que não esta na área errada poderia de ser melhor do que a mim em minha empreitada pelos ecos desse mundo.
Desculpe-me, senhor, estava tão concentrada na procura de um objeto valiosíssimo de um outro hóspede, que nem escutei o seu nome. Com vê, meus ouvidos não são tão apurados assim, ou melhor, são, mas não para todas as coisas. E até hoje não compreendi muito bem isso, penso que é coisa de família. Meu avô tinha um excelente ouvido para a música. Era marceneiro de mão cheia, aliás, dizia que o serrote na madeira emitia verdadeiros acordes. Com ele aprendi que, às vezes, uma coisa não tem nada a ver com a outra, que nem sempre a imagem diz o que lemos, e essas coisinhas aparentemente banais, mas que carregam um grande significado.

Mas agora era Jaime quem não ouvia mais. Não lhe fora fácil se apresentar, dizer seu nome. Dizer seu nome a quem? Ao vento?
Sueli estava perdida em seus pensamentos e na procura do objeto precioso, a Nagra do Sr. Jaime, que sequer ouviu o novo hóspede apresentar-se.

As estrelas ainda brilhavam num céu estranho, a lua ainda mais no alto, mas dentro, no coração de Jaime, ainda havia uma preocupação maior que não permitia que se entregasse a essa nova pessoa, tão exótica quanto ele. E não conseguia esconder a aflição de ter perdido seu instrumento de trabalho e suas mãos mostravam, pelo tremor insistente, seu nervosismo; o que fez com que Sueli se desligasse por um momento dos seus afazeres e, lendo a face do hóspede, perguntou:
-O que é mesmo que disse levar na maleta?
-Um Nagra, é um gravador poderosíssimo que capta com qualidade sons quase imperceptíveis ao ouvido humano.
-Puxa, que interessante, e você nunca pensou em usá-lo para fazer escutas, de conversas alheias e que poderiam ser interessantes de se ouvir em certos momentos de solidão?
-Na verdade, já fiz isso uma vez, mas não tenho esse costume, só uso com pessoas que me despertam o interesse. Uma vez, por descuido, acabei gravando uma conversa sua e, por acaso, ouvi que comentava sobre mim. Que eu era reservado, calado e, se não me falha a memória, intimidador. Gostaria de desfazer essa impressão. A gente poderia um dia desses tomar alguma coisa.
-Estou muito ocupada, além disso, sou casada e tenho uma criança.
-Não! Tem certeza disso? Estou quase certo de que ouvi o contrário. - Talvez seu Nagra
tenha ficado com defeito.
- Pouco provável. Mas eu estava pensando num sorvete. A senhora não gosta de sorvetes?
Adoro Sr.Jaime, ótima idéia. E quem sabe, ao sabor de um delicioso sorvete, eu possa desfazer esse equívoco, já que a probabilidade de seu Nagra ter dado defeito é inexistente.
-Vai rir muito com o que vou revelar. Não se espante não, não chega a ser demência. Mas é muito bom vê-lo sorrir. A verdade, é que tenho uma imensa paixão por livros. E leio alguns trechos em voz alta. O que gravou foi uma desses maravilhosos momentos. Talvez insanos. É uma maneira que encontrei de pertencimento à obra. No silêncio do meu quarto, ouvindo minha própria voz é como se a dor, a alegria, a descoberta dos personagens fossem meus. Outras vezes, fico em silêncio tentando enxergar o personagem: — seu rosto, seus olhos, sua boca. Aprendi com meu avô a importância de ouvir o silêncio para se criar a imagem perfeita.
Mas eu fico aqui, falando quando deveria estar ouvindo. Penso que tem muito a ensinar Sr.Jaime Cor... Desculpe-me não quero ser indelicada, mas tive uma leve sensação de que quando se apresentou disse mais um outro nome. Cajado seria ou me enganei...?

- Córdoba minha cara, a seu dispor. Curioso, conheci um Cajado há algum tempo, era um sujeito taciturno, meio coxo, dava a impressão de estar sempre tentando entender coisas que não lhe eram permitidas entender, não sei que lhe sucedeu, gostava dele, era uma dessas pessoas que a gente nunca esquece, mas que parece esquecer da gente.
- Tem muita gente assim senhor Córdoba.
- Jaime
-Sim, Jaime, por favor, não me chame de senhora, parece que esta falando com minha avó
- Com prazer Sueli, veja, somos seis bilhões de habitantes no planeta agora, muitas pessoas desaparecem neste turbilhão de gente
- Entendo, também conheci um Cajado, não sei se era coxo, mas era um bom pen pal, um amigo de internet que afinava bem com minhas idéias. Ainda somos amigos, vou perguntar a ele se ha algum coxo em sua família.
-Pois e, com tantas pessoas nesse mundo será possível que conhecemos o mesmo Cajado, Jaime? Estou tentada a crer que sim. Muita coincidência, pois esse meu amigo também tem essa característica, tão rara nos dias de hoje: — o de espantar-se com as coisas, de querer entendê-las. E apesar de conhecê-lo muito pouco, o fato de nossas idéias se afinarem, me dá essa tranqüilidade em falar dele a você. Seria ótimo não, se fosse o mesmo e, ainda, de quebra gostasse de sorvete. Sairíamos os três pelas alamedas, em busca de sorveterias.
Falaríamos da vida, do acaso, do som, do silêncio, da imagem, da amizade, do querer, e em ser quem se é. E pode ser que você ache o seu Nagra! Aí tudo passaria a não ser coincidência.
- Sim, vamos torcer que isso aconteça. Mas deixa esses Cajados pra lá. Vamos tomar nosso sorvete.
- Claro! Vamos lá.

E assim fomos pela alameda sob a luz das estrelas rumo ao sorvete de flocos.

Sergio Cajado, Youkai, Paulo Marcello, Tem um Cabelo na Minha Sopa, Sueli Aduan

10 comentários:

  1. Gostei muito!
    Criamos um texto instigante, poético e com uma reflexão, a meu ver, interessantíssima.
    Fiquei muito feliz quando nosso editor e dono do barraco :o), Sergio Cajado, introduziu no texto “ Sueli, uma personagem”, coincidência ou não,
    intencionalmente ou não, isso não importa. O que foi genial é que essa atitude me deu a oportunidade de uma escolha perigosa, mas deliciosa: — a de colocar-me no “olho do furação” : o).A-DO-REI!. E agradeço meu amigo.

    bjão a todos

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  2. Trilha sonora sugerida... ^^
    http://www.youtube.com/watch?v=059HEaYRve0
    XD

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  3. Meus caros. Lí, gostei e achei muitíssimo interessante este novo modo de escrever.Não quero participar destas obras a várias mãos porque não estou preparado para isso. Mas gosto. E a partir desta historia vou ler todas que vocês fizerem.
    Façam histórias. Estou esperando ansioso.

    Um abraço para todos.
    Renato (amigo do Cajado)

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  4. Renato meu velho amigo, pessoas inteligentes como vc são sempre bem vindas! Sinta-se a vontade para postar sempre que tiver vontade assim iluminando o caminho destes humildes rabiscadores de idéias.
    grande abraço!

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  5. Sensacional.
    Instigante este passa passa de teclado.Excelente dinâmica.Me deliciei.

    Beijos,

    Cris

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  6. Vim aqui marcar presença e lembrar-te que não esquecí deste blog que é por nome um exercício de escape literário.

    Infelizmente estou com uma falta de tempo terrível por conta do trabalho.

    Peço que não se esqueça de mim moça.

    Direto do Rio.
    Beijão.

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  7. Ô Cris,eu tb me delicio muito participando. Escreve tb + :O); valeu!! Geraldo Brito; Léo não me esqueci de vc não,moço rsrs.
    PARTICIPEM!!!

    Acredito que o editor e dono do Barraco, Sérgio Cajado, fica muito feliz tb. Todos nós!!!
    bjão

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  8. ô Sueli, dono do barraco não, fica mais chique editor do mocó :o)

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  9. :o)Que seja + chic então,Sérgio.

    Gostei da nova imagem,lindona!

    abs

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